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18 de outubro de 2008

CULPA DO SAPATO


Há coisas muito piores na vida do que um sapato apertado, embora incomodem menos. Mas a culpa é sempre do sapato.

Isso porque o sapato dilacera sua carne até que você tome uma providência. Ele te força a agir rápido. E o resto, a gente vai deixando.

A conta que não foi paga, a peça do carro que não foi trocada, a consulta que não foi marcada, um pedido de desculpa que não foi feito.
E assim vamos levando.
Até que venha a multa, que o carro quebre, que a doença aconteça e que se estabeleça a mágoa.

Mas se fosse um sapato apertado, você agiria rápido.
Porque culpado mesmo é o sapato.

Se a fila do raio-x do aeroporto está grande, embora alguns já tenha se livrado dos metais na bandeja plástica, só pode ser por causa da alma de aço na estrutura dele.
Do sapato.

E para ser a mulher mais atraente da festa, se investe num modelo salto agulha, alto. Mas por causa dele, ela será a primeira a ir embora, sofrendo pela inclinação do pé.
Maldito sapato.

A caminhada fica mais curta se ele não amortece como deve.
Ele, o sapato.

No Japão, não entram em casa por trazer impurezas, micróbios.
Sujo, o sapato.

Se mesmo nos livrando do celular, das moedas e das chaves, a porta giratória do banco trava, ele é o responsável.
Tudo por causa do sapato.

Queremos o couro deles: dos bois, cobras, crocodilos e cabras.
Escalpeladores, os sapatos.

Mas mesmo para quem se atribui culpa, também há méritos.
Isso porque o sapato é o impulso da mudança.

Embora os saltos incitem à tentação, os esportivos nos prometem aventura.
Fechados nos trazem discrição, mas uma tira brilhosa aguça nossa vaidade.
Méritos do sapato.

O sapato do bebê, imortalizado em bronze, eterniza a lembrança.

O sapato da noiva, após o casamento, vira talismã.

O sapato lustrado pontua a favor do candidato ao emprego.

O sapato embaixo da cama vira a diversão do cachorrinho carente.

Sapatos protegem do chão quente, da poça de água, do caco de vidro deixado pelo bêbado que quebrou a garrafa na rua.

Assassinos deixam rastros através dele. Culpado, o sapato.

E se você engorda, não caberá no jeans.


Mas continuará calçando o mesmo sapato.

Sapatos elevam a bailarina ao topo na ponta do pés.


Protegem deficiências de infância, encantam na mocidade e confortam na velhice.


Sapatos inspiram tendências, ilustram épocas, traduzem comportamentos.

Sapatos excitam fetichistas e ornamentam pés disformes.

Sapatos nivelam a altura dos casais.
E fazer os solteiros podólatras se apaixonarem.

Sapatos animam mulheres com corações despedaçados.
Calçam a frivolidade e a necessidade.
Diferenciam camadas sociais desde a antiguidade.
E glorificam o inusitado na moda.

Esqueçamos os calos e os joanetes.

E que venham nossos sapatos novos.

Porque não se pode negar o mérito deles.
Afinal, não é a toa que a gata borralheira só vira princesa quando o príncipe encontra ele, o sapato.
Texto: Micheline Mustafa


2 comentários:

  1. Amei o texto...muito show mesmo!
    Amo tudo relacionado a sapatos...meu sonho de consumo sempre foi sapatos!!!
    vc arrasa em seus textos...!!!

    Amo-te
    tua fã!!

    ResponderExcluir
  2. Amiga!!!!!!!!!!!!!!!! Vou copiar e mandar pras minhas amigas...
    Excelente, parabéns!

    ResponderExcluir

Já que está aqui, fala!

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